A VIRTUALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS - AUTENTICIDADE E TRANSPARÊNCIA

No âmbito da unidade curricular Educação e Sociedade em Rede, do mestrado em Pedagogia do eLearning, da Universidade Aberta, é-nos proposto refletirmos sobre a autenticidade e a transparência nas redes sociais, como resultado da virtualização das relações sociais.

O Homem sempre foi, por inerência, um ser social. Sempre teve necessidade de estabelecer relações sociais com os seus pares. No passado, essas relações decorriam no âmbito do contacto físico, do face-a-face, que decorriam da presença, física, das pessoas num mesmo local ou no mesmo espaço geográfico. Atualmente, com o crescer das tecnologias de informação e comunicação, surgem novas dinâmicas sociais, as relações não se estabelecem apenas através do contacto presencial, mas também através do espaço virtual, do ciberespaço. Como redere Castells (2003, p. 443)., “estão emergindo online novas formas de sociabilidade e novas formas de vida urbana, adaptadas ao nosso novo meio ambiente tecnológico”

Lévy (1999) reconhece o ciberespaço como um mecanismo de comunicação interativo e comunitário, materializado como inteligência coletiva e surgindo, assim, novos modos de socialização e de aprendizagem. Estes novos modos de socialização e os modos com que as pessoas adquirem e transmitem o saber são apenas possíveis pela facilidade com que a interação decorre nesse ciberespaço. Ora, este novo espaço de interação é bem diferente do espaço geográfico, pelo que promove novas formas de socialização, originando uma nova cultura, a cibercultura.

“Bem-vindos à nova morada do género humano. Bem-vindos aos caminhos do virtual.” (Lévy, 1999)

 A sociedade exige de cada um de nós um comportamento socialmente correto, conforme os padrões estabelecidos, que podem variar de comunidade para comunidade. O desrespeito por esses padrões resultam em exclusão da comunidade, exclusão social.

Mas numa comunidade constituída por pessoas com diferentes origens geográficas, diferentes crenças, diferentes valores éticos e morais, e localizadas em diferentes espaços geográficos, comunicando síncrona ou assincronamente, como determinar, então, quais os padrões e regras a respeitar nessa sociedade em rede? Serão essas regras diferentes daquelas que respeitamos na “outra” sociedade?

Recorde-se que Castells (2003) considera que as redes são estruturas abertas a todos, desde que sejamos capazes de comunicar dentro da rede, por tal capazes de se expandirem ilimitadamente. O autor refere ainda que essa comunicação exige que se usem os mesmos códigos de comunicação.

 No nosso entender, a convivência em sociedade exige-nos a prática da cidadania, portanto o mundo globalizado da sociedade em rede também exigirá essa cidadania, à qual nos poderemos referi como cidadania digital.

Lagoa (2016, p.33) refere que “Todos os indivíduos vivem diferentes circunstâncias e experienciam diferentes histórias de vida”.

A este respeito recorremo-nos de um post no Intagram da jornalista e empresária Ana Margarida Garcia Martins, mais conhecida como A Pipoca Mais Doce, que criou o seu blog em 2004. É das primeiras blogers portuguesas e talvez a primeira a viver exclusivamente do seu blog. Portanto, há cerca de um mês, a influencer, partilhou no seu Instagram o seguinte “desabafo”.

Acabei há pouco de responder a uma entrevista em que tive de falar bastante sobre mim e sobre aquilo que sou. E depois pus-me a pensar nesta coisa de ter uma imagem pública, na forma como as pessoas me vêem, naquilo que acham que sou. Ou naquilo que cada um de nós escolhe ser numa rede social. Apesar de andar por aqui há muitos anos, acho que me dou muito pouco a conhecer. Mostro-vos o lado divertido, sarcástico, despreocupado, e talvez isso passe uma falsa sensação de que está sempre tudo bem. E a verdade é que está, na maior parte dos dias está. Mas depois há outros em que me sinto atropelada pela vida, em que sou incapaz de tomar decisões, em que gostava de ter alguém a ministrar-me doses saudáveis de Propofol para me pôr a dormir sempre que não me apetecesse ter de lidar com algumas merdas (alguém que não o médico do Michael Jackson, claro). E já sei, já sei, não é suposto queixar-me, porque tenho saúde, emprego, família, e há tanta gente pior do que eu e mimimimi, mas olhem, é o que é, e eu também sou muito isto: negativa, pessimista, com uma incapacidade crónica de ver o copo meio cheio. Há dias, alguém me dizia que sou uma pessoa má e eu, que já ouvi de tudo e até sou bastante imune, fiquei às voltas com aquilo. Talvez porque não ache que seja, mas às tantas a pessoa já vive tão dividida entre o real e o digital que tudo se mistura numa imensa confusão. Para hoje é o que temos, amanhã há-de ser outra coisa. E Propofol, alguém arranja?”

Este “desabafo” ou mesmo reflexão da jornalista / bloguer / influencer /empresária remete para a ideia de coexistência de diferentes “eus”, refere viver “dividida entre o real e o digital”, mas não será o digital uma prolongação do real? Só que num espaço diferente e com a diferença de que a as interações decorrem e fluem a uma velocidade exorbitante, capazes de atingir, em segundos, dezenas, centenas ou até milhares de pessoas.

No nosso entender, esta é a única diferente entre o “real” e o “digital”. Por tal, todas as regras aplicadas na sociedade “real” devem aplicar-se à sociedade em rede, ou “digital”.

Repare-se ainda que a jornalista refere “alguém me dizia que sou uma pessoa má”. Este é outro dos problemas, se assim lhe podemos chamar, do digital… esta sensação de que na internet se pode ser, fazer, dizer tudo o que quisermos, gerando uma certa loucura digital, comparado a um "mundo paralelo", onde podemos "ser", “dizer” e “fazer” aquilo que quisermos.

Alguns acreditam esta postura nos faz perder a nossa “identidade”. Nós acreditamos que esta postura faz parte da nossa identidade, que se mostra neste contexto, da mesma forma que outras facetas da nossa identidade se mostram noutros contextos.

Quantos estudantes boémios se tornaram em sérios e sóbrios executivos? Será que deixaram de ser boémios ou será que nunca foram sérios?

Nós somos vários “eus” que se adequam e demonstram de forma diferente perante contextos e circunstâncias diferentes. Nem todos somos exatamente aquilo que aparentamos ser. O mesmo acontece nas redes sociais, no ciberespaço, onde esta dissimulação, pela própria natureza das interações estabelecidas, é ainda mais fácil de decorrer. Como também é mais fácil “apagarmos” o “eu” de alguém que interaja connosco, como refere Virilo (2000, p.72 e 73),  “A chegada deste clone… Além do mais pode fazê-lo desaparecer.”

Numa sociedade, desde a nascença, a cada indivíduo é-lhe associado um nome, um local e data de nascimento, uma filiação, e depois uma série de número, número fiscal, número do passaporte, número de aluno, etc.. Estes critérios permitem identificar uma pessoa, garantindo que aquela é mesmo a pessoa que diz ser., garantir a sua identidade, de forma autêntica e transparente. Mas e na rede?

Na rede também devemos ter presente esta necessidade de identidade digital. Contudo, neste espaço torna-se mais complexo assegurar a autenticidade e a transparência. Contudo, como refere Lagoa (2016), os mecanismos e instrumentos de verificação ou validação dessa identidade não estão, ainda, adquiridos, bem como a privacidade dos dados e a segurança.

O autor diferencia identidade virtual, de autenticidade e de transparência, refletindo sobre a mesma no âmbito educação online. Assim, compreende a identidade como o “eu” e a autenticidade como a demonstração da veracidade do “eu”, quer dizer, a autenticidade comprova a identidade. Já a transparência corresponderá à apresentação que se faz do “eu” e se essa apresentação corresponde ao verdadeiro “eu”. Quanto mais próximo o “eu” apresentado for do “eu” real, maior será a transparência. Como refere Teixeira (2010), a minha identidade digital é autêntica se for transparente.

 Mas esta questão da identidade e autenticidade no ciberespaço, inclusive nas redes sociais e em outros meios de interação, pela dificuldade de auferir a verdadeira identidade do indivíduo, torna-se ainda mais complexa e difícil de auferir sobre a tal autenticidade. Será que quem assina este texto foi realmente a pessoa que o escreveu?

 Isto remete-nos para uma maior preocupação no plano da educação online. Se um modelo de ensino presencial, com largos anos de implementação, continua a enfrentar desafios por forma a assegurar a transparência, esses desafios aumentam num modelo de ensino online, onde os contactos presenciais e síncronos podem ser reduzidos, a transparência torna-se uma verdadeira preocupação. Contudo já existem alguns mecanismos e estratégias de autenticação para verificar a identidade, a transparência e autenticidade.

Para além da questão a identidade, transparência e autenticidade dos alunos, como pessoas, devemos refletir também na questão da autenticidade da informação que recebemos através da rede.

Nunca foi tão fácil publicar informação como hoje em dia. Nem nunca foi tão fácil aceder à informação. Qualquer pessoa, em qualquer momento, pode enviar para a rede todo o tipo de informação que desejar. Grande parte dessa informação, como é óbvio, não verdadeira ou é de credibilidade duvidosa. Portanto, o problema que hoje se coloca, diferentemente do que se colocava até ao surgimento da internet, prende-se com o excesso de informação, como alude Edgar Morin, o “nevoeiro informacional”.

Para Baudrillard (1991), as redes geram uma quantidade de informações que ultrapassam limites físicos, com a capacidade de influenciar a opinião pública e a massa crítica, sendo que, para ele, o ambiente está intoxicado.

Ou seja, a internet é um incomensurável repositório de informação, à qual qualquer individuo com acesso pode aceder e publicar informação. Portanto, o problema é quais as informações que são credíveis?

Será portanto necessário que, todos aqueles que integram esta sociedade em rede, ao acederem à informação, estejam conscientes da necessidade em serem seletivos  e cautelosos, não aceitando tudo como verdadeiro, válido. Existem algumas estratégias, como aceder a jornais reconhecidos, procurar informações em repositórios de universidades, utilizar motores de busca específicos, verificar se a fonte já foi citada e quantas vezes.

Por outro lado, este facilitismo de acesso à informação facilita o plágio, a fraude intelectual por parte dos pouco autênticos. É a imitação ou cópia do trabalho do outro. Esta usurpação da propriedade intelectual sempre existiu e, se por um lado a rede veio simplificar a sua prática, por outro também veio facilitar identificar essas práticas. Existem vários softwares com esse fim específico, mas até uma simples pesquisa com o Google é capaz de identificar algumas usurpações.

 

 Resumindo, estamos numa era onde têm surgido novas formas de socialização e novas culturas. Se pensarmos na história da humanidade, quantos anos decorreram até se formar uma sociedade tal e qual a conhecemos? Mais respeitadora pelos direitos dos outros, pelos seus sentimentos, compreensiva, tolerante, apesar de ainda não se ter atingido uma sociedade perfeita, se é que isso será possível.

Mas a massificação das novas tecnologias de informação e comunicação é recente. Nos últimos 20 anos vivenciou-se um desenvolvimento frenético das novas tecnologias. Quantas gerações de web já existem? Quantas gerações de telemóveis? E de computadores? Comparando com a vida de um ser humano, 20 anos correspondem a uma geração!

As novas tecnologias desenvolvem-se freneticamente e a sociedade não teve tempo ainda de se adequar a esta nova realidade. É necessário que os intervenientes nos novos espaços de interação e construtores desta nova cultura reconheçam e tenham consciência de que estes espaços não lhes permitem tudo. As normas, regras e padrões existentes na sociedade “real”, tal como a conhecíamos há uns 20 anos atrás, devem ser transpostos para a interação que se realiza no ciberespaço. Bem como todos os cuidados! Se um pai não deixa o seu filho de 10 anos ir sozinho para a escola, com medo de que alguém lhe possa fazer mal, também não o deve deixar “viajar” sozinho, sem qualquer controlo ou vigilância, no ciberespaço. Os perigos estão lá, tal e qual estão na rua, no centro comercial, no café… a forma como surgem é que é diferente.

Tal como alerta Cardoso (2006, p. 44) para a necessidade de se desenvolver o “domínio individual das literacias necessárias, para interagir com as ferramentas de mediação, quer das que fornecem acesso à informação quer das que nos permitem organizar, participar e influenciar os acontecimentos e as escolhas.”

Mas, se para Braudillard (1991) o tempo e o espaço alteraram-se e nas redes sociais o real não existe, para nós o ciberespaço é uma “adenda” à realidade. Por tal, é necessário educar e educarmo-nos para esta nova realidade que vai além dos espaços e relações físicas, muito diferente da realidade que conhecíamos até à 20 anos atrás!

A virtualização não se resume de algo falso ou imaginário, a virtualização faz parte do mundo atual e acaba por traduzir a dinâmica deste novo mundo, “A virtualização é o movimento pelo qual se constituiu e continua a se criar a nossa espécie.”  (Lévy, 1999). Como refere Lagoa (2016, p.57), “Toda a atividade gerada na Internet constitui parte da nossa identidade…”

  

Referências Bibliográficas:

  • Baudrillard, J. (1991) Simulacros e Simulações. 1.ª edição. Tradução Maria João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio d´Água.
  • Bauman, Z. (2005) Identidade. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Editora Jorge Zahar.
  • Cardoso, G. (2006). Os media na sociedade em rede. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
  • Cardoso, G., Baldi, V., Pais, P. C., Paisana, M., Quintanilha, T. L., Couraceiro, P., (2018) As Fake News numa sociedade pós-verdade. Relatórios Obercom.
  • Castells, M. (2003). A era da informação: economia, sociedade e cultura. A sociedade em rede. Volume I, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
  • Cunha, M. Z., Sunday, A., & Magano, J. (s.d.). A Virtualizacão das Redes Sociais Segundo o Pensamento de Manuel Castells e Pierre Levy. https://www.researchgate.net/publication/338234424_A_Virtualizacao_das_Redes_Sociais_Segundo_o_Pensamento_de_Manuel_Castells_e_Pierre_Levy
  • Lagoa, M. (2016). Autenticidade na rede: estudo da identidade digital. Tese de Mestrado. Lisboa. Universidade Aberta. digital. https://repositorioaberto.uab.pt/bitstream/10400.2/5574/1/TMPEL_AntonioLagoa.pdf
  • Lévy, P. (1999). Cibercultura. Lisboa: Piaget. Tradução: Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Edições 34. https://mundonativodigital.files.wordpress.com/2016/03/cibercultura-pierre-levy.pdf
  • Paiva, A. (2018). Participação e Partilha de Conhecimento na Sociedade em Rede – os Contextos Educacionais Online (Dissertação de doutoramento, Universidade Aberta, Lisboa, Portugal).
  • Silva, R.; Carvalho, A. (2014) Amizade e a virtualização das relações humanas na sociedade contemporânea: reflexões a partir de Zygmunt Bauman. Revista Espaço Acadêmico, v. 13, n. 153, p. 01-09, 2014. https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/127025/ISSN1519-6186-2014-13-153-01-09.pdf?sequence=1&isAllowed=y
  • Teixeira, A. (2010). Autenticidade e transparência na rede – reinventando o debate sobre o outro que eu também sou. https://pt2.slideshare.net/MPeL/my-m-pelantonioteixeira
  • Virilio, P. (2000).Cibermundo: A Política do Pior. Teorema.


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